sábado, 17 de março de 2007

O Direito da Razão ou a Razão do Direito?

O Direito da Razão ou a Razão do Direito?
Um breve histórico constitucional brasileiro

Nilson Borges Filhoprofessor do Departamento de Ciência Política da UFMG


1.Direito e Justiça

Buscar respostas para questões como o que é justiça? e o que é direito? num contexto histórico de 500 anos de Brasil, apresenta certas dificuldades. São questões, cujas respostas ainda permanecem em aberto. O campo da investigação jurídica encontra-se em crise, sendo que os próprios operadores do direito, dos mais passivos aos mais estridentes, perderam a capacidade de pensar sobre o justo. O que se tem notado é um retorno a certos diálogos que se concentram no conceito de justiça no singular, isto é, o do formalismo legal e o da técnica jurídica. Poucos são aqueles que se aventuram em pensar sobre aspectos mais perturbadores do direito moderno, marcado que é pelas injustiças sociais.
Os cursos de direito passam ao largo de tema tão desconcertante, pois ao mesmo tempo que ensinam as virtudes da justiça, nem de longe se preocupam com a possibilidade de que, a partir dali, pode-se construir uma nova ordem jurídica, voltada para um conceito de justiça plural. A urgência de pensar e conhecer o elemento caracteristicamente político do direito, corresponde à capacidade de reconciliar o apelo de justiça do mundo lá fora com o poder do direito em construir um mundo melhor.
Pensar o direito é desconstruir o passado e retomar a tarefa de compreender o que se passou para reconstruir o novo.
Regra geral, reduz-se o sentido de justiça confundindo-o com o conceito de direito. Cada época teve o seu significado de justiça. Os gregos relacionavam justiça com sociedade, porém consideravam os homens naturalmente desiguais, e a harmonia social seria obtida à medida que cada indivíduo desempenhasse uma atividade conforme as suas aptidões. Mas coube a Platão (420-347 ªC.) dar um sentido ético à justiça, colocando-a como a virtude das virtudes. Para os romanos, que são aqueles que nos interessam de perto, até porque o direito brasileiro sofreu forte influência do direito romano, a justiça confundia-se com a lei, com a norma jurídica. Contudo, é com o surgimento do liberalismo que se introduzirá ao direito uma cultura jurídico-institucional marcadamente de classe.
Mas foi Karl Marx quem primeiro rechaçou a possibilidade da existência de uma relação próxima entre direito e justiça, uma vez que a classe proprietária dos meios de produção introduz a ordem jurídica que desejar, e essa ordem é particular, com a finalidade de garantir os interesses da classe dominante. Marx e Engels viam todo o direito como ideológico, que podia ser explicado, dentre outros fatores, pelo aparecimento de uma classe de juristas profissionais, decorrente da divisão do trabalho. Diziam, mais ainda, que o direito é a vontade, feita lei, da classe dominante, que através de seus próprios postulados ideológicos pretende considerá-lo como expressão aproximativa da justiça eterna (Barbosa: 1984).
Ora, se para a teoria marxista a justiça só se concretiza com a extinção total do direito, pois se existir um deles o outro não pode existir, para o liberalismo o direito é um direito de classe, que no Brasil vai se consolidando, ao longo do processo de colonização portuguesa, em cima de uma cultura jurídica que reproduziu historicamente as condições contraditórias da retórica formalista e da prática patrimonialista (Wolkmer: 1998).
Foi esta tradição luso-romana, formalista e liberal, que gerou a atual crise que se abate sobre o sistema jurisdicional brasileiro. A estrutura normativista do direito positivo aplicada no Brasil tem se mostrado ineficaz e não atende mais a dinâmica de uma sociedade que passa por profundas transformações políticas e por constantes crises de legitimidade, principalmente na aplicação da justiça. O modelo liberal clássico, importado pelos filhos da elite brasileira, que frequentavam as escolas de Coimbra e Lisboa, e que concebe o jurídico meramente como legislação, como razão instrumental de legalidade, onde justiça e direito estão em planos completamente distintos, se esgotou pela própria irracionalidade da sua aplicação.
Essa elite de advogados, treinada graças ao ensino jurídico da Universidade de Coimbra, profundamente influenciada pela tradição romana, exerceu um importante papel não só na construção da ordem jurídica, mas, também, na fundação do Estado brasileiro. O direito romano era, particularmente, marcado para justificar a supremacia do soberano. E todos aqueles reis que se sobressaíam na luta pela criação de novos Estados, quase sempre se cercavam de juristas (Carvalho: 1996). Essa concepção do direito a serviço da vontade do soberano e, mais recentemente, do direito a serviço de uma classe, perpassou por toda a história política brasileira. Os soberanos brasileiros, civis ou militares, nunca deixaram de se cercar dos seus fazedores da ordem, no sentido de dar um certo ar de legalidade aos seus atos arbitrários. Assim foi na Colônia e no Império, assim o é na República.
A própria unificação ideológica da política adotada durante a fase imperial se concentrou na formação jurídica das elites, principalmente do ensino que predominava na Universidade de Coimbra, extremamente influenciada por orientação romana. Após a Independência do Brasil, com a criação de dois cursos de direito, em Olinda e São Paulo, dedicadas explicitamente à formação da elite local, o poder político recepcionou novos quadros de juristas com formação brasileira.
Nessa perspectiva, entende-se que o jurídico tem produzido e reproduzido, ideologicamente, em cada época da história brasileira, montagens políticas e representações de classe, que revelam uma estrutura legal normativa e sistematizada, com funções específicas de controle social. Daí a constatação de que o direito brasileiro constrói sua especificidade, com base numa tradição legal definitivamente marcada por uma formação social elitista, antidemocrática e formalista.
Na concepção de Antônio Wolkmer (ob. cit.), a transposição e a adequação do direito escrito europeu para a estrutura colonial brasileira, acabou reproduzindo a estranha e contraditória convivência de procedimentos burocráticos-patrimonialistas com a retórica do formalismo liberal e individualista. A dinâmica dessa junção fez eclodir horizontes ideológicos de uma tradição legalista, fundamentada em idéias de perfil liberal-conservador.
A atual discussão sobre a crise do sistema jurisdicional brasileiro, suscitada por aquilo que a agenda política chama de reforma do Judiciário, tem recolocado também no centro do debate o mito da neutralidade jurídica e o caráter de classe do direito produzido no Brasil. Talvez, a partir desse ponto, surja uma nova forma de pensar o jurídico, além do discurso técnico-formal, lógico-dedutivo, que justifica as decisões dos conflitos no estrito campo da dogmática tradicional. O modelo liberal clássico de aplicar o direito brasileiro, com certeza, não atende mais às reais necessidades da dinâmica social em curso. Em contraposição a essa modalidade tradicional de pensar o direito, uma nova corrente do pensamento jurídico está surgindo, preocupada com a função social do direito, com o alargamento das interpretações legais e com a ampliação dos laços democráticos.
Direito não é, simplesmente, justiça. O direito é uma realidade social, que deve estar a serviço da justiça. A rigor, o direito é um fenômeno histórico e, como tal, a sua aplicação não consiste apenas na observância da legalidade, nem reduz-se a ela.
Não há como falar em democracia política se o Estado não cumpre o seu papel na aplicação da justiça e se o direito, que este mesmo Estado reproduz, não for de encontro com a sociedade em geral. Democracia política envolve, notadamente, ordem jurídica justa.

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