sábado, 17 de março de 2007

Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro


Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro

Luís Roberto Barrosoprocurador do Estado, advogado no Rio de Janeiro, professor de Direito Constitucional da UERJ, mestre em Direito pela Universidade de Yale

Sumário: Capítulo


I: Pré-compreensão do tema. I. A pós-modernidade e o Direito. II. A busca da razão possível. Capítulo II: Algumas bases teóricas. I. A dogmática jurídica tradicional e sua superação. II. A teoria crítica do Direito. Capítulo III: Algumas bases filosóficas. I. Ascensão e decadência do jusnaturalismo. II. Ascensão e decadência do positivismo jurídico. III. Pós-positivismo e a normatividade dos princípios. Capítulo IV: Conclusão. I. A ascensão científica e política do direito constitucional no Brasil. II. Síntese das idéias desenvolvidas.
Capítulo I: Pré-compreensão do tema

I. A PÓS-MODERNIDADE E O DIREITO (1)


Planeta Terra. Início do século XXI. Ainda sem contato com outros mundos habitados. Entre luz e sombra, descortina-se a pós-modernidade. O rótulo genérico abriga a mistura de estilos, a descrença no poder absoluto da razão, o desprestígio do Estado. A era da velocidade. A imagem acima do conteúdo. O efêmero e o volátil parecem derrotar o permanente e o essencial. Vive-se a angústia do que não pôde ser e a perplexidade de um tempo sem verdades seguras. Uma época aparentemente pós-tudo: pós-marxista, pós-kelseniana, pós-freudiana (2).
Brasil. 2001. Ano 13 da Constituição de 1988. Sem superstições. O constitucionalismo vive um momento sem precedentes, de vertiginosa ascensão científica e política. O estudo que se vai desenvolver procura investigar os antecedentes teóricos e filosóficos desse novo direito constitucional, identificar seus principais adversários e acenar com algumas idéias para o presente e para o futuro. Antes de avançar, traçam-se algumas notas introdutórias para situar o leitor. A interpretação dos fenômenos políticos e jurídicos não é um exercício abstrato de busca de verdades universais e atemporais. Toda interpretação é produto de uma época, de um momento histórico, e envolve os fatos a serem enquadrados, o sistema jurídico, as circunstâncias do intérprete e o imaginário de cada um. A identificação do cenário, dos atores, das forças materiais atuantes e da posição do sujeito da interpretação constitui o que se denomina de pré-compreensão (3).
A paisagem é complexa e fragmentada. No plano internacional, vive-se a decadência do conceito tradicional de soberania. As fronteiras rígidas cederam à formação de grandes blocos políticos e econômicos, à intensificação do movimento de pessoas e mercadorias e, mais recentemente, ao fetiche da circulação de capitais. A globalização, como conceito e como símbolo, é a manchete que anuncia a chegada do novo século. A desigualdade ofusca as conquistas da civilização e é potencializada por uma ordem mundial fundada no desequilíbrio das relações de poder político e econômico e no controle absoluto, pelos países ricos, dos órgãos multilaterais de finanças e comércio.
No campo econômico e social, tem-se assistido ao avanço vertiginoso da ciência e da tecnologia, com a expansão dos domínios da informática e da rede mundial de computadores e com as promessas e questionamentos éticos da engenharia genética (4). A obsessão da eficiência tem elevado a exigência de escolaridade, especialização e produtividade, acirrando a competição no mercado de trabalho e ampliando a exclusão social dos que não são competitivos porque não podem ser. O Estado já não cuida de miudezas como pessoas, seus projetos e sonhos, e abandonou o discurso igualitário ou emancipatório. O desemprego, o sub-emprego e a informalidade tornam as ruas lugares tristes e inseguros.
Na política, consuma-se a desconstrução do Estado tradicional, duramente questionado na sua capacidade de agente do progresso e da justiça social. As causas se acumularam impressentidas, uma conspiração: a onda conservadora nos Estados Unidos (Reagan, Bush) e na Europa (Thatcher) na década de 80; o colapso da experiência socialista, um sonho desfeito em autoritarismo, burocracia e pobreza; e o fiasco das ditaduras sul-americanas, com seu modelo estatizante e violento, devastado pelo insucesso e pela crise social. Quando a noite baixou, o espaço privado invadira o espaço público, o público dissociara-se do estatal e a desestatização virara um dogma. O Estado passou a ser o guardião do lucro e da competitividade.
No direito, a temática já não é a liberdade individual e seus limites, como no Estado liberal; ou a intervenção estatal e seus limites, como no welfare state. Liberdade e igualdade já não são os ícones da temporada. A própria lei caiu no desprestígio. No direito público, a nova onda é a governabilidade. Fala-se em desconstitucionalização, delegificação, desregulamentação. No direito privado, o código civil perde sua centralidade, superado por múltiplos microssistemas. Nas relações comerciais revive-se a lex mercatoria (5). A segurança jurídica – e seus conceitos essenciais, como o direito adquirido – sofre o sobressalto da velocidade, do imediatismo e das interpretações pragmáticas, embaladas pela ameaça do horror econômico. As fórmulas abstratas da lei e a discrição judicial já não trazem todas as respostas. O paradigma jurídico, que já passara, na modernidade, da lei para o juiz, transfere-se agora para o caso concreto, para a melhor solução, singular ao problema a ser resolvido.
Seria possível seguir adiante, indefinidamente, identificando outras singularidades dos tempos atuais. Mas o objeto específico do presente estudo, assim como circunstâncias de tempo e de espaço, recomendam não prosseguir com a apresentação analítica das complexidades e perplexidades desse início de era. Cumpre dar desfecho a este tópico (6).
O discurso acerca do Estado atravessou, ao longo do século XX, três fases distintas: a pré-modernidade (ou Estado liberal), a modernidade (ou Estado social) e a pós-modernidade (ou Estado neo-liberal). A constatação invevitável, desconcertante, é que o Brasil chega à pós-modernidade sem ter conseguido ser liberal nem moderno. Herdeiros de uma tradição autoritária e populista, elitizada e excludente, seletiva entre amigos e inimigos – e não entre certo e errado, justo ou injusto –, mansa com os ricos e dura com os pobres, chegamos ao terceiro milênio atrasados e com pressa.

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