sábado, 17 de março de 2007

Norma e Constituição

Norma e Constituição


O homem como ser dotado de livre arbítrio pode em tese praticar as mais diversas condutas que estão na ordem do ser, bem como pode deitar os mais diversos mandamentos ou ordens aos homens do seu meio social.
Podemos afirmar que a norma tem o objeto específico de ser dirigida a uma conduta humana que deve ser, considerando a relação indireta do direito com os interesses comunitários.
A partir da diferenciação entre o ser e o dever-ser, Kelsen traça o elemento característico da norma como um ordem dirigida a regular a conduta humana que deve ser observada na preservação dos interesse comunitários.
A norma tem um destinatário e esta é uma expressão para saber, com toda certeza, que a conduta estatuída como devida na norma é uma conduta humana, a conduta de uma pessoa(4).
Se a norma estatui um conduta humana que deve ser, como tal, a norma, é o sentido de um querer de um ato de vontade, e, se a norma constitui uma prescrição, um mandamento, é o sentido de um ato dirigido à conduta de outrem, de um ato, cujo sentido é que um outro (ou outros) deve (ou devem) conduzir-se de determinado modo(5)
Sendo um dever-ser, significa o sentido do ato de fixação da norma é um ato de vontade, dirigido a um ser que é a conduta existente na realidade, a qual corresponde à norma, e isto significa uma conduta igual àquela que aparece na norma como devida, mas não é a ela idêntica(6), pois situam-se em planos diferentes.
A norma, porem, é que atribui significação jurídica à conduta humana regulada, funcionando como esquema de interpretação desta conduta, como lícita ou ilícita, boa ou má, servindo como o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico), como resultado de uma interpretação específica, de uma interpretação normativa(7).
Desta forma, é a norma que atribui a uma conduta humana o caráter jurídico, sem a norma antecedente a conduta é apenas um fenômeno da ordem do ser sem qualquer significação para o Direito. Temos, portanto, um antecedente lógico da norma como porta de entrada para que as condutas humanas possam ser compreendidas pelo direito.
Porém, toda ordem ou mandamento dirigido a conduta de outrem pode ter o sentido subjetivo de uma norma, no sentido de que é uma ordem dirigida à conduta de outrem que deve ser. O "Dever-ser" é o sentido subjetivo de todo ato de vontade de um indivíduo que intencionalmente visa a conduta de outro(8).
Disto decorre a necessidade de Kelsen estabelecer um critério que permita diferenciar um sentido subjetivo do dever-ser, para a norma como ato de vontade qualificado que tenha objetivamente este sentido, pois só assim, este dever-ser poderá ser designado como norma(9)
O sentido subjetivo do dever ser constitui também o sentido objetivo quando a conduta a que o ato intencionalmente se dirige é considerada como obrigatória (devida), não apenas do ponto de vista do indivíduo que põe o ato, mas também do ponto de vista de um terceiro desinteressado, desde que tal indivíduo é havido como tendo o dever ou o direito de se conduzir de conformidade com aquele dever-ser, que vinculando os seus destinatários(10).
O sentido subjetivo do dever ser é unilateral no sentido de bastar um querer dirigido à conduta de outrem, por outro lado o sentido objetivo do dever ser exige bilateralidade no pois a conduta dirigida ao outro sujeito deve ser considerada obrigatória não apenas do ponto de vista de quem impõe o ato, mas também do ponto de vista de um terceiro desinteressado que considera o ato vinculante do destinatário, e no caso da norma jurídica esta vinculação possibilita até mesmo a exigência da conduta definida na norma por meio da coação(11).
Define mesmo como característica comum ás ordens sociais-jurídicas serem ordens coativas, que reagem contra as situações consideradas indesejáveis e socialmente perniciosas, afastando as condutas humanas indesejáveis(12)
Chegando no ponto de distinção entre o dever-ser subjetivo e objetivo da norma, temos uma nova encruzilhada da teoria pura do direito de explicar o porque do sentido objetivo da norma, ou seja, porque a norma é considerada obrigatória sem que para isso se tenha que recorrer a critérios externos ao direito, como a moral ou justiça, para servirem como fundamento vinculativo das condutas.
Fixada a premissa de que a norma é um ato de vontade e um dever ser vinculativo, não necessariamente é, como tal a norma tem de ser estabelecida por um ato de vontade. Não pode existir uma norma sem um ato de vontade que a estabeleça, não pode existir um imperativo sem um mandante, uma ordem sem um ordenador(13)
É necessário existir, portanto, um órgão autorizado a estabelecer o dever ser, vinculativo dos sujeitos, por outro lado, também deverá existir uma norma que justifique esta autorização. Assim:
"A função normativa da autorização significa : conferir a uma pessoa o poder de estabelecer e aplicar normas.( ...omissis ). Uma norma do Direito autoriza pessoas determinadas a produzirem normas jurídicas ou aplicarem - nas. Nestes casos , diz-se : o Direito confere a pessoas determinadas um poder legal".(...)"Visto que o Direito regula sua própria produção e aplicação, a função normativa da autorização desempenha, particularmente, um importante papel no direito. Apenas pessoas, às quais o ordenamento jurídico confere este poder podem produzir ou aplicar normas de Direito"(14)
Kelsen encontra o elemento próprio do direito que permite o fechamento hermético do fenômeno do direito : a norma. Norma que autoriza a um órgão estabelecer as normas, é também o meio que justifica esta autorização, assim, retira qualquer justificativa extra-jurídica para o fenômeno do direito.
Isto o permite afirmar que "interessa especialmente ter em conta que os actos através dos quais são produzidas as normas jurídicas apenas são tomados em consiste, ração, do ponto de vista do conhecimento jurídico em geral, na medida em que são determinados por outras normas jurídicas"(15).
Compreendendo portanto esta circularidade, outra natureza não poderia ter a Constituição dentro da teoria de Kelsen do que ser uma "norma", tanto no sentido subjetivo como no sentido objetivo. Ato de vontade dirigido aos sujeitos e que os vincula.
Paralelamente, emerge a necessidade de distinguir a Constituição como norma que é das outras normas postas, pois não poderia ela ser qualquer norma e, assim, ele começa a delimitar os elementos que permitem-na ser caracterizada como norma fundamental. Pari passu, há necessidade de encontrar uma justificação téorica para esta norma fundamental que também é posta, ou seja o seu fundamento último, e seguindo o paradigma fundamental estabelecido este fundamento deverá necessariamente ser uma norma, a qual ele atribui o nomen de norma hipotética fundamental, norma esta pressuposta.
Desta forma, apesar do caráter lógico-epistêmico do pensamento kelseniano, na solução para encontrar um fundamento especifico do Direito (a norma), válida a lição Paulo de Tarso Ramos Ribeiro que, fundado na lição de BOBBIO de que o positivismo jurídico pode ser caracterizado como uma ideologia da justiça, pela identificação da justiça das normas com a sua validade, leciona que :
" Nesse pano de fundo ideológico, não é possível desvincular os conceitos de norma e valor, validade e justiça, direito e moral. E isto, porque, de uma forma singular, o inverso também é verdadeiro; isto é, se de um lado a lógica positivista aceita, e até mesmo proclama a desvinculação epistemológica entre direito e moral como uma espécie de ethos próprio, de outro, sem a vinculação final entre eles, no sentido de uma justificação (axiológica) última dos meios(normas) não se chega à obediência civil. Vale dizer, o resultado final só é obtido com a vinculação: as normas devem ser obedecidas enquanto tais, porque justas; a obediência às normas jurídicas é, sob esse ângulo, um dever moral..
Mesmo para um autor como Kelsen, o primus inter pares do positivismo jurídico, não lhe foi possível suprimir de todo de sua Teoria Pura do Direito a discussão acerca do fundamento último da obrigação de obedecer, que nele culmina com a norma fundamental pressuposta de natureza lógico-transcendental. Com ela, é forçoso constatar a prevalência de valores éticos, se não na eleição das pautas normativas, na sua obediência. Ainda que, com isso, não se esteja a afirmar, de modo algum, a renúncia kelseniana ao rigor metodológico positivista na formulação de sua teoria geral, conquanto em sua obra se limite a enunciar a interrupção momentânea do relativismo moral, que conduz ao infinito a reflexividade dos valores que enformam as normas jurídicas, por uma norma, fundamento de validade das demais, aceita por todos porque pressuposta"(16)
O próprio Kelsen sabe reconhecer os limites pressuposição da norma hipotética fundamental, ressaltando que embora seja possível pensar as ordens jurídicas sem pressupor a norma fundamental, como relações entre indivíduos que comandam e indivíduos eu obedecem ou não obedecem, lembra que isto é, sociológica e não juridicamente, dado que a norma fundamental, como norma pensada ao fundamentar a validade do Direito positivo, é apenas a condição lógico-transcendental desta interpretação normativa, ela não exerce qualquer função ético-política mas tão só uma função teorético-gnoseológica(17).
Temos assim, que apesar de Kelsen encontrar um fundamento lógico para a sua epistemologia do Direito, esta pode assumir um caráter ideológico como apontado por Paulo de Tarso Ramos Ribeiro, quando se não questiona a forma de inserção do fundamento último do sistema de normas que é a norma pressuposta. Mas Kelsen atento, justifica a sua teoria.
Dentro deste diapasão, podemos observar que a Constituição histórica de determinado país tem a natureza jurídica de uma norma é a norma fundamental deste sistema jurídico particular, pois serve de fundamento de validade de todas as demais normas deste.
Mas, o fundamento de validade desta Constituição histórica deverá ser também uma norma, mas uma norma pressuposta, e por não encontrar outro nome mais adequado, cremos, Kelsen a chama também de Constituição à norma hipotética fundamental. Para fazer a diferenciação entre estas normas, cria a noção de compreensão da Constituição em dois sentidos : jurídico-positivo e no sentido jurídico-epistemológico.
Disto posto, temos que para Kelsen o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma, onde há escalonamento piramidal, pois uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior(18) (Dinâmica Jurídica).
Dizer que a norma hipotética fundamental é pressuposta não significa atribuir a ela qualquer fundamento transcendental, mas apenas que não é uma norma posta no direito por uma autoridade jurídica, mas uma norma que o sentido subjetivo dos fatos geradores de normas postas de conformidade com a Constituição é interpretado como o seu sentido objetivo, ou seja, obrigatório(19), como premissa maior de um silogismo é logicamente indispensável para a fundamentação da validade objetiva das normas, sendo uma norma apenas pensada e como tal não é uma norma cujo conteúdo seja imediatamente evidente(20).
A Constituição é uma norma, Kelsen abdica de qualquer possibilidade de compreender a Constituição como documento originário do pacto social como poderiam pensar os jusnaturalistas ou apenas uma folha de papel como diria Lassale, pois pressuporia a consideração de elementos estranhos ao direito nestas afirmativas. A Constituição histórica é a norma fundamental que atribui validade a um sistema de direito positivo, e a norma hipotética fundamental é o fundamento de validade desta.

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