sábado, 17 de março de 2007

2.Um Direito de Classe

2.Um Direito de Classe

Os primeiros traços de administração de justiça aportaram no Brasil com a expedição de Martim Afonso de Souza, por volta de 1530. A necessidade de estabelecer, de forma mais concreta, uma colonização permanente e de regular a sociedade, Martim Afonso recebeu instruções, com amplos poderes judiciais, de tomar medidas que garantissem a exploração da terra. Como comandante militar, tinha total autoridade legal sobre todas as causas, cíveis e militares, e, exceto para os fidalgos, não havia recurso de suas decisões (Schwartz: 1979).
Com poder judicial sobre as pessoas do Brasil, Martim Afonso tinha ordens da Corte para criar cargos judiciais necessários a correta administração da Colônia. A doação de terras, em sistema de Capitanias, a doze fidalgos portugueses, concedia poderes judiciais a seus proprietários, que podiam nomear pessoas (ouvidores) com alçada civil e criminal. Assim, o proprietário da terra tinha o controle total na administração da justiça. O direito colonial nasce, portanto, vinculado à propriedade privada e com objetivos claros de controle social.
A instituição do cargo de Governador-Geral trouxe uma significativa mudança na estrutura judicial implantada pelas Capitanias. Aparece a figura do Ouvidor-Geral que centraliza, em suas mãos, os poderes judiciais, se sobrepondo à estrutura já existente de magistrados municipais e ouvidores designados pelos donatários., O direito de aplicar a justiça continuava com o dono da terra, mas sob a supervisão de um administrador real.
Faz-se mister assinalar que a lei portuguesa no Brasil atingia sobretudo os europeus, uma vez que os nativos eram privados de recorrer aos canais normais de justiça. E mesmo entre os europeus radicados no Brasil, alei fazia distinção entre fidalgos e o populacho.
Somente com a chegada de Mem de Sá (1557) é que os assuntos de justiça são ampliados em detrimento dos poderes judiciais dos donatários. Por volta de 1580 o Brasil passou de uma administração judicial efetuada por ouvidores particulares e ligada ao proprietário da terra, para um sistema mais centralizado e com vinculações mais sólidas com a Coroa portuguesa.
Para alguns analistas, desenvolveu-se nesse período um cenário contraditório de dominação política, ou seja, de um lado, o poder nas mãos dos proprietários de terra, num profundo quadro de divisões de classe; de outro, o esforço centralizador que a Corte impunha na administração da justiça.
O direito positivo aplicado no Brasil se deu com a transferência da legislação portuguesa (Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), sem qualquer alteração, para uso em território nacional.
Nos primeiros dois séculos de colonização, o direito predominante foi o português, que dava tratamento discricionário à população nativa. Desde o início da colonização, além da marginalização e do descaso pelas práticas costumeiras de um direito nativo e informal, a ordem normativa oficial implantava, gradativamente, as condições necessárias para institucionalizar o projeto expansionista português (Wolkmer: 1998).
Nesse cenário, fica claro o papel representado pelos magistrados que não agiam como bons juízes, pois à medida que faziam parte da sociedade colonial, estavam diretamente envolvidos com seus interesses pessoais e com os da classe que representavam.
Com a Independência do Brasil, em 1822, se fez necessário a implantação de uma nova ordem jurídica. Reflexo dos acontecimentos de além-mar, o liberalismo europeu alcança terras nacionais e passa a se constituir na mais importante proposta doutrinária para a construção de um arcabouço legal positivo.
No continente europeu, o iluminismo aceitava que o seu programa de reformas fosse feito pelo déspota esclarecido. No entanto, a Revolução Francesa colocava uma pá de cal nessa euforia racionalista. A filosofia liberal vai afirmar a existência de direitos individuais anteriores à sociedade política. Objetivando realçar a posição do homem-indivíduo e diminuir a força do Estado, o liberalismo apela para a conservação de alguns direitos individuais.
A Revolução Portuguesa de 1820 recepciona na sua futura Constituição (1822) essas novas idéias, iniciando-se aí o domínio do pensamento liberal em terras lusitanas. A lei, que em Portugal nada mais era do que a vontade do soberano é substituída pela vontade de uma classe emergente.
Assim, o Estado liberal português aparece como o definidor de uma outra ordem sócio-política, cujo plano jurídico atua junto ao monopólio da força, produzindo normas e leis que determinarão o comportamento dos indivíduos. Nesse esforço de controle social, os próprios direitos individuais se apresentam como mera concessões ou, no máximo, como expressão da autolimitação do Estado.
A primeira Constituição brasileira traduz uma certa influência européia. Não é um texto avançado, pois o sentimento político que prevalecia no Brasil nessa época tinha contorno mais conservador do que liberal. E toda ela foi formulada com base na defesa da ordem e dos interesses estabelecidos pela elite agrária. No seu conteúdo ficaram consignadas a idéia de uma sociedade fechada, hierarquizada e elitista, uma vez que o projeto liberal que predominou expressaria a vitória da corrente conservadora.
O liberalismo brasileiro, totalmente voltado para a dominação patrimonial, deve ser visto, também, por seu traço juridicista. A partir dessa junção, entre o individualismo político e o formalismo legalista, que moldou ideologicamente o principal perfil de nossa cultura jurídica, nasce o bacharelismo liberal. Essa vertente juridicista do liberalismo brasileiro teve papel determinante na construção da ordem político-jurídica nacional.
A Carta Constitucional de 1824 não só consagrou um compromisso entre a burocracia patrimonial e os liberais (moderados e conservadores), como se utilizou de fórmulas legais que anulavam certos ideários do liberalismo clássico.
A segunda Constituição brasileira, já no período republicano, vem, ainda, imbuída do mesmo individualismo liberal-conservador que marcou a Carta de 1824, onde expressa modelos de representatividade política desvinculados da vontade popular. As elites agrárias, que continuavam a exercer o controle político-econômico do Estado brasileiro, mantiveram seus interesses no texto de 1891, como forma de assegurar a continuidade de sua dominação.
Pode-se dividir, sem muito rigor científico, o constitucionalismo brasileiro em dois tempos: de 1824 a 1834, quando prevaleceram interesses de uma elite agrária, e de 1937 a 1969, quando da predominância de uma ordem jurídica autoritária, centrada em ideologias fascistas. Exceção feita ao período populista, que vai da vigência da Constituição de 1946 até o golpe militar de 1964.

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