sábado, 17 de março de 2007

II. A BUSCA DA RAZÃO POSSÍVEL

II. A BUSCA DA RAZÃO POSSÍVEL (7)

Os gregos inventaram a idéia ocidental de razão como um pensamento que segue princípios e regras de valor universal. Ela é o traço distintivo da condição humana, juntamente com a capacidade de acumular conhecimento e transmiti-lo pela linguagem. Traz em si a superação dos mitos, dos preconceitos, das aparências, das opiniões sem fundamento. Representa, também, a percepção do outro, do próximo, em sua humanidade e direitos. Idealmente, a razão é o caminho da justiça, o domínio da inteligência sobre os instintos, interesses e paixões.
Sem enveredar por um debate filosófico feito de sutilezas e complexidades, a verdade é que a crença iluminista no poder quase absoluto da razão tem sido intensamente revisitada e terá sofrido pelo menos dois grandes abalos. O primeiro, ainda no século XIX, provocado por Marx, e o segundo, já no século XX, causado por Freud. Marx, no desenvolvimento do conceito essencial à sua teoria – o materialismo histórico – assentou que as crenças religiosas, filosóficas, políticas e morais dependiam da posição social do indivíduo, das relações de produção e de trabalho, na forma como estas se constituem em cada fase da história econômica. Vale dizer: a razão não é fruto de um exercício da liberdade de ser, pensar e criar, mas prisioneira da ideologia, um conjunto de valores introjetados e imperceptíveis que condicionam o pensamento, independentemente da vontade.
O segundo abalo veio com Freud. Em passagem clássica, ele identifica três momentos nos quais o homem teria sofrido duros golpes na percepção de si mesmo e do mundo à sua volta, todos desferidos pela mão da ciência. Inicialmente com Copérnico e a revelação de que a Terra não era o centro do universo, mas um minúsculo fragmento de um sistema cósmico de vastidão inimaginável. O segundo com Darwin, que através da pesquisa biológica destruiu o suposto lugar privilegiado que o homem ocuparia no âmbito da criação e provou sua incontestável natureza animal. O último desses golpes – que é o que aqui se deseja enfatizar – veio com o próprio Freud: a descoberta de que o homem não é senhor absoluto sequer da própria vontade, de seus desejos, de seus instintos. O que ele fala e cala, o que pensa, sente e deseja é fruto de um poder invisível que controla o seu psiquismo: o inconsciente (8) (9).
É possível, aqui, enunciar uma conclusão parcial: os processos políticos, sociais e psíquicos movem-se por caminhos muitas vezes ocultos e imperceptíveis racionalmente. Os estudos de ambos os pensadores acima – sem embargo de amplamente questionados ao longo e, especialmente, ao final do século XX – operaram uma mudança profunda na compreensão do mundo. Admita-se, assim, que a razão divida o palco da existência humana pelo menos com esses dois outros fatores: a ideologia e o inconsciente. O esforço para superar cada um deles, pela auto-crítica e pelo auto-conhecimento, não é vão, mas é limitado. Nem por isso a razão se torna menos importante. A despeito de seus eventuais limites, ela conserva dois conteúdos de especial valia para o espírito humano: (i) o ideal de conhecimento, a busca do sentido para a realidade, para o mundo natural e cultural e para as pessoas, suas ações e obras; (ii) o potencial da transformação, o instrumento crítico para compreender as condições em que vivem os seres humanos e a energia para interferir na realidade, alterando-a quando necessário (10).
As reflexões acima incidem diretamente sobre dois conceitos que integram o imaginário do conhecimento científico: a neutralidade e a objetividade. Ao menos no domínio das ciências humanas e, especialmente no campo do Direito, a realização plena de qualquer um deles é impossível. A neutralidade, entendida como um distanciamento absoluto da questão a ser apreciada, pressupõe um operador jurídico isento não somente das complexidades da subjetividade pessoal, mas também das influências sociais. Isto é: sem história, sem memória, sem desejos. Uma ficção. O que é possível e desejável é produzir um intérprete consciente de suas circunstâncias: que tenha percepção da sua postura ideológica (auto-crítica) e, na medida do possível, de suas neuroses e frustrações (auto-conhecimento). E, assim, sua atuação não consistirá na manutenção inconsciente da distribuição de poder e riquezas na sociedade nem na projeção narcísica de seus desejos ocultos, complexos e culpas.
A objetividade se realizaria na existência de princípios, regras e conceitos de validade geral, independentemente do ponto de observação e da vontade do observador. O certo, contudo, é que o conhecimento, qualquer conhecimento, não é uma foto, um flagrante incontestável da realidade. Todos os objetos estão sujeitos à interpretação. Isto é especialmente válido para o Direito, cuja matéria prima é feita de normas, palavras, significantes e significados. A moderna dogmática jurídica já superou a idéia de que as leis possam ter, sempre e sempre, sentido unívoco, produzindo uma única solução adequada para cada caso. A objetividade possível do Direito reside no conjunto de possibilidades interpretativas que o relato da norma oferece.
Tais possibilidades interpretativas podem decorrer, por exemplo, (i) da discricionariedade atribuída pela norma ao intérprete, (ii) da pluralidade de significados das palavras ou (iii) da existência de normas contrapostas, exigindo a ponderação de interesses à vista do caso concreto. Daí a constatação inafastável de que a aplicação do Direito não é apenas um ato de conhecimento – revelação do sentido de uma norma pré-existente –, mas também um ato de vontade – escolha de uma possibilidade dentre as diversas que se apresentam (11). O direito constitucional define a moldura dentro da qual o intérprete exercerá sua criatividade e seu senso de justiça, sem conceder-lhe, contudo, um mandato para voluntarismos de matizes variados. De fato, a Constituição institui um conjunto de normas que deverão orientar sua escolha entre as alternativas possíveis: princípios, fins públicos, programas de ação.
O constitucionalismo chega vitorioso ao início do milênio, consagrado pelas revoluções liberais e após haver disputado com inúmeras outras propostas alternativas de construção de uma sociedade justa e de um Estado democrático (12). A razão de seu sucesso está em ter conseguido oferecer ou, ao menos, incluir no imaginário das pessoas: (i) legitimidade – soberania popular na formação da vontade nacional, por meio do poder constituinte; (ii) limitação do poder – repartição de competências, processos adequados de tomada de decisão, respeito aos direitos individuais, inclusive das minorias; (iii) valores – incorporação à Constituição material das conquistas sociais, políticas e éticas acumuladas no patrimônio da humanidade.
Antes de encerrar este tópico, é de proveito confrontar estas idéias – reconfortantes e apaziguadoras – com o mundo real à volta, com a história e seus descaminhos. A injustiça passeia impunemente pelas ruas; a violência social e institucional é o símbolo das grandes cidades; a desigualdade entre pessoas e países salta entre os continentes; a intolerância política, racial, tribal, religiosa povoa ambos os hemisférios. Nada assegura que as conclusões alinhavadas nos parágrafos acima sejam produto inequívoco de um conhecimento racional. Podem expressar apenas a ideologia ou o desejo. Um esforço de estabilização, segurança e paz onde talvez preferissem luta os dois terços da população mundial sem acesso ao frutos do progresso, ao consumo e mesmo à alimentação.
A crença na Constituição e no constitucionalismo não deixa de ser uma espécie de fé: exige que se acredite em coisas que não são direta e imediatamente apreendidas pelos sentidos. Como nas religiões semíticas – judaísmo, cristianismo e islamismo –, tem seu marco zero, seus profetas e acena com o paraíso: vida civilizada, justiça e talvez até felicidade. Como se percebe, o projeto da modernidade não se consumou. Por isso não pode ceder passagem. Não no direito constitucional. A pós-modernidade, na porção em que apreendida pelo pensamento neoliberal, é descrente do constitucionalismo em geral, e o vê como um entrave ao desmonte do Estado social (13). Nesses tempos de tantas variações esotéricas, se lhe fosse dada a escolha, provavelmente substituiria a Constituição por um mapa astral.

Nenhum comentário: